Impressões sobre como os chilenos lidam com o passado autoritário

Ainda em êxtase com a visita que fiz ontem ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos, aqui em Santiago. O museu é focado na ditadura militar chilena, mas também denuncia situações de violação de direitos humanos em outras partes do mundo, incluindo o Brasil. O museu é imponente e extraordinário, e a mostra permanente sobre o regime militar no Chile é forte. Mas uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a velocidade com que aconteceram as comissões da verdade tanto no Chile quanto na Argentina.
No primeiro, já aconteceram três comissões ou formas similares de apuração dos abusos da ditadura, a primeira ainda nos anos 1990. Na Argentina a Comissão aconteceu ainda na primeira metade dos anos 1980.
Por aqui parece que os chilenos tratam a questão de forma apartidária, não importando quem esteja no poder.
Reflexão importante num momento em que, no Brasil, o "Fla x Flu" político que vivemos tem levado muita gente ao absurdo de relativizar os abusos e violações da ditadura brasileira.
Além do museu, a comissão chilena criou outros espaços de memória e monumentos espalhados pelo país para que a reflexão sobre o regime não pare.
É o caso da foto desse post: uma escultura de Allende (deposto pelo golpe), que fica localizada no centro de Santiago.
Diários de Bicicleta

Nunca tive muita oportunidade para ouvir o Talking Head. Conheço há algum tempo as mais famosas da banda, como Psyco Killer e só.
Durante muito tempo David Byrne também passou despercebido por mim. Foi só com os lançamentos de Tom Zé e Mutantes no exterior, feitos por ele, e através das constantes citações feitas por Caetano ao artista escocês, que passei a nutrir uma certa curiosidade pelo seu trabalho.
Mas eis que o meu debute na obra do líder dos “Cabeças Pensantes” não se deu através de discos, mas de um livro.
Tenho usado um Kindle há quase dois anos e a Amazon me enviou como sugestão de livro “Diários de Bicicleta”, cuja sinopse despertou em mim uma grande curiosidade, mas, à época, suficiente apenas para adicioná-lo à minha lista de desejos. Eis que em janeiro desse ano, com uma viagem de férias marcada para Santiago, enquanto buscava opções de leitura para levar comigo, voltei ao referido livro e decidi baixá-lo no meu e-reader. Que grata surpresa!
Byrne usa bicicletas como principal meio de transporte desde os anos 1970, portanto bem antes de algumas cidades europeias hoje notabilizadas pelo esforço em desenvolver essa forma de mobilidade se destacarem. Ele faz questão de afirmar que não é um ativista da causa, mas os relatos apresentados no livro o contradizem. Tanto nos EUA, quanto na Europa, e mesmo na América do Sul (onde a discussão ainda engatinha, com exceção de algumas poucas cidades com Santiago e Bogotá) o escocês é frequentemente convidado a participar de congressos e outros eventos que estimulam o debate em torno da bicicleta como meio de transporte eficiente.
O título do livro é sugestivo, mas incapaz de resumir o seu conteúdo. Cada capítulo trata da experiência do autor em alguma cidade específica, seja em turnês com o Talking Head, em carreira solo ou em outros compromissos profissionais. Mas, muito mais do que uma mera descrição da sua experiência ao andar de bicicleta em cada um desses lugares (ele costuma consigo levar uma bike dobrável a cada viagem), David Byrne acaba fazendo uma discussão interessante e mais ampla sobre mobilidade urbana.
Não há como não remeter às recentes intervenções feitas em algumas cidades brasileiras, especialmente naquelas que sediaram partidas da Copa do Mundo. Desapropriações escandalosas e imorais; construção de novas pistas e viadutos com foco exclusivo na melhoria da mobilidade de automóveis e a completa indiferença quanto a um planejamento ao longo prazo do transporte coletivo e o amadurecimento de outras formas de transporte individual como a bicicleta.
A prefeitura de Natal até esboçou um projeto de criação de ciclovias e ciclofaixas na cidade, mas pecou em diversos pontos. Os espaços demarcados para trânsito de bicicletas são isolados, desintegrados do sistema de ônibus e das ínfimas linhas de trem. Além disso faltou um projeto de educação voltado para os motoristas de ônibus e carros, pedestres e para os próprios ciclistas sobre o uso dessas ruas agora compartilhadas.
De toda forma, pelo contato com o livro de Byrne e pela experiência em Santiago, no início do ano, aumenta por aqui a vontade de explorar mais as possibilidades do uso de bicicletas como meio de transporte.
Compositor de 5ª série

Tenho o hábito de eventualmente fazer pesquisas no Google sobre citações aos meus projetos musicais espalhadas pela grande rede. Quase sempre encontro textos sobre discos que eu lancei e ainda não tinha lido. Mas, de vez em quando retorno à textos antigos sobre o SeuZé, que eu já conhecia.
Na semana passada, enquanto fazia a referida pesquisa, me deparei com críticas sobre o primeiro disco do SeuZé, Festival do Desconcerto, lançado em 2005. Esse foi o primeiro disco que gravei e lancei em uma banda e por isso tenho um carinho especial por ele. Mas não posso negar que não gosto de muita coisa que foi registrada ali, especialmente dos timbres. Também não gosto da forma confusa e mal processada com que misturamos as referências. Até acho que FeLL e Augusto fizeram um bom trabalho nas guitarras e Eduardo Pinheiro, que produziu o CD, conseguiu tirar um excelente som dos instrumentos deles. Mas, ouvindo hoje, acho o som da bateria e do baixo muito artificiais e comprimidos.
Enfim, o que quero afirmar com toda essa divagação é que consigo perceber que o álbum de debute do SeuZé é cheio de lacunas e deficiências e que eu entendo tranquilamente certas críticas negativas das quais foi alvo. Concordo que algumas letras têm poética simples e imatura. Hoje eu não batizaria uma canção minha com um nome tão direto e simplista como ”Antônio Conselheiro”. Mas essas são marcas do tempo e provavelmente daqui a 10 anos eu olharei para a minha produção atual com um olhar bem reticente.
Entretanto, uma crítica recorrente às primeiras musicas do SeuZé que eu ainda não consegui digerir é a que questionava o nosso direito de abordar temáticas ligadas àqueles esteriótipos tradicionais sobre o Nordeste: seca, sofrimento dos sertanejos, entre outras. O argumento? Somos playboys de classe média oriundos de centros urbanos.
De fato, hoje em dia tenho outras referências e preferências e não me interesso por escrever sobre o que escrevia no começo do SeuZé, mas não faço isso porque não consigo me identificar nos personagens sobre os quais escrevo. Essa linha argumentativa ignora um aspecto básico inerente à produção artística que é a representação, além de por o crítico numa posição complicada. Colocar em xeque o direito de um compositor abordar uma realidade na qual ele não está diretamente inserido levaria críticos de música a autorizarem poquíssima coisa a ser escrita.
Por exemplo, questionar o direito de Chico escrever canções sob o ponto de vista de mulheres simplesmente porque ele é homem, nos privaria do privilégio de ouvir pedradas como "Com Açúcar, com Afeto", "Atrás da Porta" ou "Tatuagem".
Reproduzo abaixo o trecho de uma dentre diversas críticas que analisaram o primeiro disco do SeuZé sob essa ótica.
"Mais redonda em sua proposta, a banda potiguar Seu Zé vem colecionando elogios com seu promissor primeiro trabalho, Festival do desconcerto, um disco quase conceitual que também aposta na mistura rock/mpb e, a bem da verdade, acerta tanto quanto erra nos alvos em que mirou. [...] A certa altura do disco, o ouvinte fica a se perguntar da legitimidade de letras como "eu vou partir, vou deixar meu sertão / com esperança na alma e enxada na mão", entoadas por jovens de aparência tão classe média"
(http://rockloco.blogspot.com.br/2006/09/como-era-gostosa-minha-mpb.html)
O blog que menciono acima era administrado por uma turma que tocava um programa de uma rádio baiana. Mas o teor da análise se repetiu em textos e falas sobre o Festival do Desconcerto, vindos de Natal e de outros estados.
Refletir sobre essa questão no momento em que me proponho a trabalhar em uma nova leva de composições pode soar como uma forma de autodefesa antecipada, ou uma tentativa de justificar certas temáticas que eu venha a abordar. Não é. Sequer sei sobre o que escreverei, muito menos tenho um conceito a abordar nos esboços de canções que já encaminhei.
A primeira vez que entrei em contato com a noção de "eu lírico" foi numa aula ministrada para a minha turma de 5ª série, pela estimada professora de Língua Portuguesa, Ana Alice, no Colégio Salesiano de Natal. Obviamente não tinha noção àquela época de como me apropriaria daquele conceito de maneira mais prática. Lembrar dele agora é uma forma de me precaver de um dos principais males que podem acometer um compositor: a autocensura.
Aos críticos e colegas compositores que pensam diferente só tenho duas coisas a oferecer: o debate ou um livro de português da 5ª série.
Discos como atalhos

Entre 2008 e 2010 estive envolvido no meu mestrado em História. Na pesquisa que eu desenvolvi, tentei entender as mudanças na relações sociais decorrentes da introdução dos primeiros aparelhos reprodutores de música (fonógrafos e gramofones), no Rio de Janeiro, na primeiras décadas do Século XX.
A fase em que eu tive mais dificuldade de concentração e foco foi durante a revisão bibliográfica. Eu precisava fazer leituras e tomar notas de praticamente tudo o que já havia sido escrito sobre a minha temática. O volume de leituras que já era grande, tornava-se enorme quando se juntava aos textos das disciplinas que eu estava cursando.
Diante da sobrecarga, cheguei perto de cair na tentação de me apropriar das ideias de comentadores. Explico. Não parecia muito mais cômodo e pratico do que ler tudo o que Mário de Andrade escreveu sobre música, repetir o que outros autores já concluíram sobre o modernista? Alguns chamam isso de plágio, outros de atalho intelectual. Resisti por pouco.
Lembrei dessa situação quando estava ouvindo hoje um compositor norueguês não muito conhecido no Brasil: Sondre Lerche. Conheci o escandinavo há uns 10 anos, a partir da indicação do amigo Ricardo Vilar. À época, acompanhávamos alguns blogs de download de música e costumávamos compartilhar com o outro o que achávamos interessante. A partir de então, passei a acompanhar tudo o que o músico lançou.
Depois de alguns meses sem fazer, ouvi novamente o disco “Two Way Monologue”, que junto de “Duper Sessions“, integra o meu top 2 do compositor.
Engraçado como a cada audição um disco nos revela coisas diferentes. Hoje, constatei que o Two Way Monologue é uma espécie de atalho musical, por conter referências bem digeridas a muita coisa boa da música pop anglo-americana dos anos 1960 para cá. Lá você encontra ecos de Beach Boys (arranjos de cordas e vocais que remetem ao Pet Sounds), Beatles, Dylan, tudo numa roupagem moderna e sem soar pastiche.
Essa é uma das grandes habilidades de composição e arranjo que eu ainda estou perseguindo: processar bem as referências e apresentar algo diferente a partir delas.
Ao longo dessa semana - a de debute desse blog - venho trabalhando numa parceria com Ticiano D’amore, que desde os primeiros esboços tem elementos de Bossa Nova, tanto na harmonia, quanto na rítmica. Estou satisfeito demais com a letra que Ticiano iniciou e com a melodia que estamos construindo, mas ainda não consegui pensar numa estrutura que fuja do clichê de bossa.
Vou deixar o disco do Sondre Lerche no meu player de música mais algum tempo para ver encontro o atalho certo.
Ficou curioso sobre o álbum que comentei? Compartilho agora:
[embed height="600" width="450"][play.spotify.com/album/0Gg...](https://play.spotify.com/album/0GgrwWOOVYRnE1odeLtYCK)[/embed]
Música em versão beta

Em algum outro blog que já mantive durante um curto intervalo de tempo, falei que sou muito indisciplinado para compor. Tenho uma inveja branca de amigos compositores que conseguem experimentar uma rotina de criação constante, mas nunca consegui fazer o mesmo.
Em geral, eu componho por demanda. Foi assim com todos os discos do SeuZé e com o de estréia do Forasteiro Só. Diante de um projeto com deadline determinado, eu costumo arregaçar as mangas e só paro quando atinjo a quantidade de canções necessárias para aquele disco. Acontece que esse método de criação me esgota. Vivo uma imersão tão intensa durante aquele período, que quando encerro o processo, não consigo mais pensar em compor pelos próximos meses. E aí, quando a ideia de um novo projeto ou disco surge, tudo recomeça, pois, entre um trabalho e outro, eu não consegui produzir aos poucos. Confesso que mais de uma vez já cheguei a adiar a ideia de fazer um disco pelo receio de entrar nesse frenesi que descrevi acima.
Eis que me pego novamente cheio de ideias que gostaria de transformar em canções. Cogitei usar esse apanhado de composições para um novo disco do SeuZé ou para um novo registro do Forasteiro Só. Até mesmo reuni coragem para considerar lançar algo realmente solo, assinando como Lipe Tavares. Independentemente da escolha, percebi que no fim eu acabaria caindo no mesmo problema do qual tenho tentado fugir desde que comecei a compor.
Então, estou tentando uma mudança de método: ao invés de partir do projeto, partirei das canções. Vou tentar reunir disciplina e organização para compor mais frequentemente e quando achar que tenho um recorte significativo desse momento de composição, ou à medida que as músicas forem surgindo, decidirei que rumo elas tomarão.
E é aí que chego ao sentido de ser desse blog. Escrever sobre o processo é uma forma de me motivar a fazer da composição parte da minha rotina, quase um hábito. Na verdade, espero que uma coisa alimente a outra, visto que, também, nunca consegui escrever com a frequência que pretendo.
A ideia é que esse espaço funcione como um diário de composição mesmo. Pretendo falar sobre as ideias para letras, músicas e/ou arranjos. Eventualmente quero falar sobre o que tenho ouvido, lido e aproveitado como referência. Também tenho muita vontade - não necessariamente coragem - de ir soltando os esboços mais crus das canções, desde os primeiros rascunhos de letras, até os registros mais simplórios e toscos das músicas. Além disso, também espero falar um pouco sobre as ferramentas que utilizarei ao longo do processo: softwares e equipamentos de áudio e suportes para registro de ideias.
Outra razão de tornar esse processo público, é convidar quem esteja lendo a ser parceiro e contribuir com ideias sobre todos os aspectos da criação dessas canções.
O negócio por aqui é música em versão beta.
Listo abaixo meus perfis em algumas redes sociais que também serão alimentados com conteúdo sobre esse projeto.
Twitter: @lipetavares
SoundCloud: soundcloud.com/lipetavares
Instagram: @tavareslfelipe
Filmes vistos - O Segredo dos Seus Olhos, 2009 - ★ ★ ★ ★ ★

Assistido em 22 de janeiro de 2022.
Fonte: https://letterboxd.com/felipetavares/film/the-secret-in-their-eyes/